domingo, 29 de novembro de 2009


VEGETANDO

Dos mundos
Ao pé do sorriso em desespero,
Uma tentativa de marcar o nome
No início de uma tal supremacia.

Vegetando,
Nunca os ventos fizeram tanta falta.

Das aparências
Ao fechar dos vidros de benzina,
Um segredo para aleijar o homem
No absurdo de uma tal irreverência.

Vegetando,
Nunca a minha miséria foi tão angustiante.

Das vertigens
Aos planetadores insanos no inverno,
A abertura dos olhos traz pânico
No caminho de uma tal antecedência.

Vegetando,
Nunca os meus sonhos estiveram tão dispersos.

(Planetador - Mergulhando na Brasa... / Maio/2001)



Toda Arte Pode Falar de Amor

Tento apenas me espalhar por aí
De uma maneira tal
Que ninguém possa me rearrumar,
Para que amanhã eu não seja mais
Tão igual a você.

Tento apenas me espalhar por aqui
De uma maneira desigual,
Para que ninguém possa me reajustar
E para que eu nunca precise
Me achar “o tal”, como você.

Tento sempre me espalhar por acolá
De uma maneira anormal,
Para que ninguém possa me reintegrar
E para que ainda assim
Eu possa ser vital para você.

E para que possamos
(Mesmo com as diferenças)
Sermos vitais uns para os outros.


(Planetador em Pedaços - 02/2001)


sexta-feira, 13 de novembro de 2009


LEI DOS DEDOS


Na frente de cada dedo,

Uma auto-definição realizada.


(Planetador - O Último Suspiro - 05/2002)


O RESTO DO CAMINHO

Quando os olhos se abrem,
Tudo o que acabou de acontecer
Vira apenas mais um risco
E o sorriso que antecedeu a lágrima
Deixa de se perpetuar;

O resto do caminho torna-se então nebuloso
Como o teu beijo deste instante.

Quando os olhos saem do transe,
A água já evaporou de meu corpo
E teu sangue passa a ser a esperança
De que nossa piscina
Continuará a ser utilizada;

O resto do caminho torna-se então uma incógnita
Como o teu silêncio deste instante.

(Planetador em Pedaços - 02/2001)


sexta-feira, 6 de novembro de 2009


O Conto sem Fim

o camarada e a moça cruzaram-se pela rua principal da cidade. ele numa calçada, ela na outra. por alguns instantes fitaram-se olhos nos olhos, ela com a sensação de já tê-lo visto em algum lugar, ele com a sensação de que ela já o tinha visto em algum lugar.

pela rotina que a vida traz, ele entrou num bar e pediu ao balconista um cigarro, derby vermelho.
pela repetição monótona dos dias ela parou em frente a uma loja de roupas e ficou observando a si mesma no reflexo do vidro, encaixando-se em cada roupa de casamento.
o camarada pegou o jornal que estava no balcão e na primeira página, a tragédia: "marido mata a mulher estrangulada com um fio de cobre".
a moça entrou na loja e escolheu seis vestidos, sem experimentar. entregou seu cartão de crédito à vendedora, que empacotou as roupas e agradeceu a preferência. a moça saiu rua afora, atravessou a larga avenida e foi sentar-se à sombra de uma frondosa mangueira.
o camarada saiu do bar, disse ao balconista que naquele dia ia dar mengão na cabeça, pediu se podia ficar com o jornal, e diante da resposta positiva do dono do bar, foi até a praça para sentar e dar uma lida antes de ir cumprir suas tarefas diárias.
a moça procurou um isqueiro na bolsa e viu que não havia. pra que teria um isqueiro ou algo que fizesse fogo se nem fumava? ninguém anda com isqueiro na bolsa só pra atear chamas às vestes...
o camarada sentou-se no banco e viu aquela moça ao seu lado, procurando algo na bolsa. nada disse.
a moça olhou de relance pro camarada e o reconheceu. algo brilhou em seus olhos.
o camarada viu aquele brilho e lembrou do brilho do cobre e da reportagem da primeira página do jornal daquele dia. soltou um arroto com sabor de café e olhou pra moça pra ver se ela tinha sentido o cheiro.
e a resposta foi positiva, o polegar e o indicador da moça tapando o nariz. "você tem isqueiro?", ela então perguntou.


Um Novo Dia de Sol

após dias e dias de chuva, o sol resolveu voltar a mostrar sua força. as raízes das plantas da horta do camarada salvaram-se do apodrecimento por muito pouco, contou ele ao rapaz que estava sentado ao seu lado naquele ônibus lotado. o rapaz parecia não estar ouvindo nada, mas mesmo assim o camarada falava e falava sem parar. sua alegria era muita.

para a moça não fazia a menor diferença se o sol estava de volta ou não. ela até preferia os dias chuvosos, romantizava-os ao extremo. de dentro do quarto, deitada na cama, cortinas fechadas, ela ouvia o barulho dos carros e até chegou a pensar em levantar e dar uma volta, mas que nada... a preguiça não deixava. não saía de sua cabeça a imagem do camarada. em verdade, não lembrava dos detalhes daquele rosto, mas ainda sentia a sensação pelo corpo, a sensação energética, o calor que emanou da imagem dele na rua.
o ônibus passou direto pelo ponto onde o camarada iria saltar, e ele nem percebeu. o rapaz ao seu lado dormia e ele continuava falando das suas plantas na horta, com um sorriso de orelha a orelha.
num canto do quarto da moça, uma aranha tecia uma bela de uma teia, torcendo pra que algum mosquito ficasse agarrado a ela. estava com fome.



o camarada acordou cedo e separou a roupa com a qual sairia alguns instantes mais tarde para mais um dia de caminhada.
a moça dormiu cedo naquela manhã para acordar quando desse na telha.
o camarada foi até a janela de casa, apurou a audição para ouvir somente o canto dos canários soltos que teimavam em pousar na aroeira que ficava sempre parada na porta da sua casa. parecia que seria um bom dia. a água pro café já borbulhava na leiteira.
a moça escovou os dentes, olhou suas olheiras no espelho. pensou no camarada, pensou em quando se daria aquele encontro já tão esperado. sabia que a coragem e o medo caminham juntos. não sabia qual dos dois levaria adiante.
um cachorro leproso lambia os restos de acém jogados na porta do açougue onde o camarada não mais comprava carne. o dono fumava um cigarro enquanto cortava peças de picanha em bifes suculentos. moscas e baratas, possíveis de serem vistos, enfeitavam o ambiente. as sombras do dia eram o engano da nuvem naquela tarde sensível.
a moça sorriu pra si mesma, beijou o espelho e viu o rosto do camarada por cima do seu. começou a ter a sensação de estar enlouquecendo. foi até a cozinha, abriu a geladeira e procurou o quiabo cozido da noite anterior. quando abriu a panela esquecida, fungos já tomavam conta do alimento. ela não percebera, mas não comia há dias.
o camarada saiu para o trabalho, mas antes regou a horta e cortou as folhas amareladas pela falta de nutrientes.


Sol


o camarada não havia dormido nada na noite anterior, nada mesmo. acordou cedo naquela manhã, tomou um café requentado e reforçado e partiu pro trabalho forçado e escravo de cada dia, pra poder no final do mês ganhar aquela miséria que o chefe chamava de salário.
a moça havia dormido bastante na noite anterior, bastante mesmo. acordou tarde naquele dia, almoçou a comida fresquinha feita pela vovó querida e partiu pra dar uma voltinha pela praça, para ver se encontrava outra vez com o rapaz do dia da chuva. não precisava trabalhar, alguns parentes queridos haviam deixado uma boa soma pra garantir seu futuro, e ela gastava pouco e vivia investindo em fundos de bancos. trabalhava sim, mas só pra não ficarem falando dela no bairro onde morava.
o camarada, na hora do almoço, resolveu ir até a praça dar uma voltinha. comprou seu já clássico pão com mortadela e foi se sentar à mesa dos velhinhos do xadrez. a rotina já o incomodava, ao menos os velhinhos já não eram os do dia anterior. sábado de sol, podia estar na praia, mas não.
a moça viu o rapaz e o sol iluminou seu rosto...


Chuva

a chuva caía fininha, sem parar, na cidade histórica. o camarada caminhava sem guarda chuva, com os dois tênis furados, pulando as poças que cruzavam o caminho... comprou cem gramas de mortadela e três pães de sal na padaria do maneco e foi até a praça. sentou no banco dos velhinhos do xadrez (um xingava o outro, a derrota doía) e preparou os sanduíches. mal começou a comer, a chuva apertou e começou a molhar pão, mortadela, os velhos, os cabelos do camarada e as peças do jogo. rei e rainha de papel machê.
o camarada queria acender um cigarro, mas a chuva caía e não haviam marquises na cidade. queria fumar uma erva mas haviam policias demais nas ruas, nem um congoblue adiantaria.
enquanto isso, da janela de um prédio que ficava bem próximo à praça, a moça observava os atos do camarada e dos velhinhos. com os dedos digitava algo no teclado do computador e com os olhos alternava entre praça e tela. perdera a hora do almoço e, como não havia almoçado, sabia que demoraria a sentir vontade de cagar. levantou, caminhou até o bebedouro, tomou três goles daquela água com gosto de metal e voltou aos seus afazeres: um olho na tela, outro na praça. mas o camarada já não estava mais lá.
na porta de um bar, os dois velhinhos se atracavam. o camarada chegou perto, viu a carteira de um deles cair no chão, veio se aproximando e pegou sorrateiramente a ditacuja. ninguém deu atenção ao fato, todos estavam interessados mesmo no embate.
o camarada saiu andando na direção do ponto de ônibus, abriu a carteira e dentro dela haviam algumas fotos de crianças jogando bola, um vale-idoso e receitas médicas. segurou para si apenas a que receitava o viagra. o resto jogou na lata do lixo.
a moça da janela procurava e procurava, mas a neblina começava a tomar conta da praça e ela não conseguia ver mais quase nada. seus olhos estrábicos permaneciam um na tela, outro na neblina. e da neblina então saiu uma borboleta, que pousou em seu nariz e a beijou.